domingo, abril 03, 2011

POETA EM PUTREFAÇÃO

"A poesia é decerto uma loucura:
Sêneca o disse, um homem de renome.
É um defeito no cérebro... Que doudos!
É um grande favor, é muita esmola
Dizer-lhes — bravo! à inspiração divina...
E, quando tremem de miséria e fome,
Dar-lhes um leito no hospital dos loucos...
Quando é gelada a fronte sonhadora
Por que há de o vivo, que despreza rimas,
Cansar os braços arrastando um morto,
Ou pagar os salários do coveiro?"
(Álvares de Azevedo 1831-1852)

E jazia o corpo inerte, encostado sob a sombra de uma árvore antiga. Ao lado, uma garrafa esvaziada de cachaça. Apesar de desfigurado pela decomposição que se manifestava em seu curso naturalmente estabelecido, pude reconhecer o cadáver como sendo de um poeta muito conhecido, que perambulava pelas ruas da cidade. Os trapos vomitados que vestia costumeiramente, a barba desgraçada e pestilenta. Da boca desdentada, versos saíram em fluxos intermináveis... Poesia aos ouvidos entorpecidos pelas imagens mais estúpidas que eram criadas através das rimas e do ritmo da fala do poeta louco. Flores, sol, amores perdidos, toda sorte de inutilidades. Palmas ao poeta!

Agora veja o que resta. O cadáver sendo consumido pelos vermes que numa onda violenta se manifestam em seu ventre inchado. A coloração da tez, o livor das extremidades, os humores mefíticos expelidos. Sânie que escorre das chagas abertas. Os insetos devoradores, a nuvem de moscas, o miasma pestilento que emana o pedaço de carniça que outrora se preocupava com rimas, beleza, poesia e insânias... Foi um estúpido apreciado por uma legião de "sensíveis". A única poesia que vejo é o corpo morto misturando-se à poeira. 

Eu, que desprezo as rimas, vou embora enquanto o poeta, com as secreções morbígenas que secreta, escreve sua última poesia no mato que o cercou em seu leito de morte...

Nenhum comentário:

Postar um comentário