domingo, abril 03, 2011

O ULTRA-ROMÂNTICO

E o rapaz contava, soluçando em prantos, todo o seu “amor”. Falava de todas as virgens anêmicas e suas pálidas frontes banhadas por um suor convulso em meio às noites de carícias infantis. E eu ria do pobre amante. Bebia meu vinho e ria de tamanha insolência. A taverna estava cheia. Vários bêbados circulavam,  ainda que trôpegos, pelo espaço. Poetas anônimos recitavam seus versos para as belas prostitutas da casa. Pego uma delas em meus braços. Ao jovem digo:

-Rapaz! Abandona aos vermes estes teus sonhos pueris! Que estes famintos devoradores consumam toda esta tua insânia! Relega à putrefação todas estas tuas ilusões ultra-românticas! Estas jovens pálidas que outrora lamentastes a perda jamais existiram, creio eu. Entrega-te à formosura das morenas que ali transpiram lascívia, verme. Aqueles volumosos seios são reais. O colo daquelas meretrizes estão longe da frieza destes cadáveres com os quais tu sonhas. Livra-te dos fedores daquelas carcaças inertes! Viva ao menos um dia fora desta tua ilusão literária!

Mas o diabo em minha frente não me dava ouvidos. Enterrava cada vez mais a face entre suas duas mãos e lamuriava...

-Diabo! Que morras sufocado neste pranto teu ilegítimo! Que os corvos carniceiros se saciem de tua carne podre, infeliz! Levem o cérebro onde fermentas loucuras e devaneios cegos!

Eis que ele ergue os olhos, vermelhos como brasa incandescente:

-Do que falas, incrédulo? Este teu materialismo não te permites entender minha situação. Não passas de um desesperado que busca o calor do colo prostituído. Os beijos que todos já provaram, o gozo que todos já gozaram. Tu és um cadáver que respira! De teu corpo emanas apenas este ateísmo mefítico!

-Diabo insolente! - brado - Alimentando tuas loucuras o que ganhas? A idolatria que tens para com os cadáveres anêmicos de tez amarelenta é repulsiva!

Por fim, o jovem levanta da mesa e sai da taverna. Deve ter ido ler mais algumas páginas dos romances ultra-românticos donde surgem os fantasmas que o atormentam... Volto à minha meretriz. Uma ode à secura do meu materialismo merece ser entoada!

O PASTOR

A menina se revira na cama velha onde estão ensopados, dum suor velho, os lençóis. O quarto mal iluminado encontra-se infestado por esta emanação infecta. A sua velha avó profere alguma prece que não compreendo. O dialeto é estranho a mim; já a mãe, mulher de meia-idade, está ajoelhada numa posição penitente. Outras mulheres em uníssono cantarolam uma música ancestral. E a menina... A menina se contorce com mais violência; abruptamente. 

É dramático ver os espasmos deste corpo macilento, sem roupas. Percebo um riso no canto daquela boca. Uma voz gutural... Ela rosna. Todos, atônitos, estão paralisados pelo temor. A voz é ameaçadora, ainda que eu não entenda o que acabou de ser dito. Prantos inauditos... O calor aumenta e o fedor se torna mais acre. No meu relógio já se marca o fim da tarde. O crepúsculo se revela lá fora; o quarto cada vez mais lúgubre e mórbido se torna. É insuportável, sufocante e mortífero continuar assistindo tão grotesca cena. À porta alguém bate apressadamente. Um anônimo corre para abri-la. Este volta correndo e gritando alto:

-É o pastor! É o pastor!

O recém chegado pastor adentra ao quarto nauseabundo e não se impressiona com a devassidão da posição da jovem. Não se incomoda com o fedor. Não me percebe ali. Ele parece já ter um vasto conhecimento acerca destas manifestações obscuras duma mente perturbada. Diz numa voz seca e ríspida:

-É um espírito malígno que se apossou desta criança.

Todos silenciam diante da sentença. O meu interesse começou a aumentar...

SOBRE O MÁRMORE

Repousas pacata sobre o mármore gélido,
Atestando a simplicidade de formas outrora vívidas.
Carregas consigo um semblante tão singular
Da vulgaridade imperceptível que jaz fria.

Ornamento simplório para a sepultura,
Lasciva meretriz acamada pela peste.
Definhando em seus suores mefíticos
Banhada, enrijece o corpo em cãibras.

Exumada... Sobre o mármore,
Intestinos para fora do corpo repulsivo.
Nuvem de moscas que paira sobre a fronte do infestado cadáver macilento...

INSALUBRIDADE

Sentia-me terrivelmente angustiado na clausura deste tormento. O ambiente, cáustico, destruía meus nervos através de constantes estímulos deletérios... Sons repetitivos miseravelmente se reproduziam em intervalos irregulares. Ruídos e mais ruídos! Um fedor nauseabundo,originado do mais repulsivo amálgama de detritos residuais, eu era obrigado a inalar. O ranger de mecanismos desconhecidos me dava a certeza de que havia sido condenado por algum crime hediondo, tamanho era meu sofrimento ali.

Vi outras pessoas; algumas sentadas, outras de pé segurando-se em vigas de aço. Pareciam sofrer a mesma desgraça que eu... Amontoavam-se. O ambiente metálico se assemelhava a uma enorme câmera de tortura. Vômitos exalavam seu odor característico. As paredes estavam cobertas por camadas incontáveis de dejetos. E a câmera de tormentos se movia! Desgraçado... não encontrei outra denominação a mim por experimentar tamanho processo malígno. Lamentei por horas... Ainda não podia descer do ônibus, afinal minha parada estava longe...

POETA EM PUTREFAÇÃO

"A poesia é decerto uma loucura:
Sêneca o disse, um homem de renome.
É um defeito no cérebro... Que doudos!
É um grande favor, é muita esmola
Dizer-lhes — bravo! à inspiração divina...
E, quando tremem de miséria e fome,
Dar-lhes um leito no hospital dos loucos...
Quando é gelada a fronte sonhadora
Por que há de o vivo, que despreza rimas,
Cansar os braços arrastando um morto,
Ou pagar os salários do coveiro?"
(Álvares de Azevedo 1831-1852)

E jazia o corpo inerte, encostado sob a sombra de uma árvore antiga. Ao lado, uma garrafa esvaziada de cachaça. Apesar de desfigurado pela decomposição que se manifestava em seu curso naturalmente estabelecido, pude reconhecer o cadáver como sendo de um poeta muito conhecido, que perambulava pelas ruas da cidade. Os trapos vomitados que vestia costumeiramente, a barba desgraçada e pestilenta. Da boca desdentada, versos saíram em fluxos intermináveis... Poesia aos ouvidos entorpecidos pelas imagens mais estúpidas que eram criadas através das rimas e do ritmo da fala do poeta louco. Flores, sol, amores perdidos, toda sorte de inutilidades. Palmas ao poeta!

Agora veja o que resta. O cadáver sendo consumido pelos vermes que numa onda violenta se manifestam em seu ventre inchado. A coloração da tez, o livor das extremidades, os humores mefíticos expelidos. Sânie que escorre das chagas abertas. Os insetos devoradores, a nuvem de moscas, o miasma pestilento que emana o pedaço de carniça que outrora se preocupava com rimas, beleza, poesia e insânias... Foi um estúpido apreciado por uma legião de "sensíveis". A única poesia que vejo é o corpo morto misturando-se à poeira. 

Eu, que desprezo as rimas, vou embora enquanto o poeta, com as secreções morbígenas que secreta, escreve sua última poesia no mato que o cercou em seu leito de morte...

BRUMAS


Em incertezas abatemos quimeras relutantes,
Vaga o som da escuridão, em ondas imperceptíveis
Escumas recobrem aquilo que era tão certo e próximo...

Cancros entranhados lembram-nos a todo momento
Do Fim material sem propósito, amargamente concebido,
Inerências assombrosas...

SERES INFAMES

“Seres infames, profanas criações dos ventos pestilentos que sopram e mutilam. Criaturas bestializadas e horrendas. Cães vindos do inferno, das profundezas abissais surgem a vomitar blasfêmias. Deicidas... seres aniquiladores dos vivos, devoradores dos podres cadáveres. Habitantes daqueles ambientes desolados e mortíferos os quais a vida exige que sejam evitados para sua própria manutenção... Ghouls!"(Escrito Anônimo).

I - A quem interessar possa

A noite, associada aos seus mistérios ancestrais, revela-se sempre uma aterradora inimiga. Mesmo aqueles homens que foram dotados de uma imaginação pouco impressionável frente à cadeia de manifestações inexplicáveis que envolvem a existência humana estão sujeitos a experimentar momentos do mais profundo pavor e angústia, proporcionados pela negrura infindável que a tudo envolve num manto mórbido e doentio.

Talvez estas histórias extraordinárias, sempre relatadas no curso da cultura humana, soem fantasiosas e absurdas para as céticas inteligências... Mas quanto a isso eu nada posso fazer. Não procuro convencer a quem quer que seja acerca da veracidade destes fatos tão excepcionais. Apenas sigo uma ordem imperiosa e de caráter muito particular. Eu mesmo acho que tal infâmia deveria ser mantida em segredo e oculta nas profundezas insondáveis do esquecimento. Guardar tais lembranças e torná-las inacessíveis a mim mesmo é um desejo que nutro com todas as minhas forças desde aquele fatídico dia... Entretanto, para minha desgraça e total ruína, não tenho nenhum poder, nenhum arbítrio sobre os conteúdos que em vultos bruxuleantes se manifestam em meus sonhos e nas imagens diabólicas e desconexas que me atormentam sadicamente todos os dias. Nestes momentos que beiram o meu desgraçado fim, apesar de toda a resistência que em vão tento esboçar, meu corpo é direcionado à escrita desde depoimento amaldiçoado.

O suor frio, o coração que funciona num ritmo doente, minha respiração fraca e as mãos trêmulas refletem a ação destes pensamentos sobre meu organismo. De tal medida, já peço desculpas antecipadas pela insolente caligrafia deste manuscrito hediondo. A urgência de minha morte fez com que tu sejas o primeiro a saber de tais fatos, ocorridos em uma data que eu não irei precisar com exatidão. Que a má-sorte daqui por diante exposta jamais se coloque a ti...

II - Um dia qualquer: localidades

A caminhada até o túmulo de minha mãe, que realizo todos os anos, em sua memória, mais uma vez havia esgotado todas as minhas forças. Com um terreno por demais acidentado, estas precárias condições impedem que eu possa seguir a viagem de carro. Deixo-o, todas as vezes, em frente à casa de um velho conhecido de meus pais e muito querido por minha mãe. Um senhor de idade já avançada cujos movimentos são bastante degenerados devido à sua senilidade. Adiante, poucos metros à frente, há uma entrada, com uma placa velha e já apodrecida fincada ao chão na qual está escrita, com uma péssima caligrafia e em letras vermelhas – a este ponto, já desbotadas –, a indicação do caminho para um cemitério. Até hoje procuro por qual razão segui o pedido de minha velha mãe de ser enterrada neste cemitério tão distante de nossa casa. O único elo entre este local e minha mãe é justamente o seu velho amigo, tão debilitado homem. “Nenhuma maldição haverá de se abater sobre mim caso eu contrarie este último capricho de minha mãe”, pensava eu à época. Mas não a contrariei... Talvez algum fluxo oculto, alguma inteligência que antecede os primeiros passos humanos neste planeta, possa guiar as decisões feitas em nossa vida, das mais triviais até às mais carregadas de subjetivismo e significado, como o cemitério no qual o corpo morto de alguém próximo e querido irá se tornar recluso para que possa seguir o curso natural de sua putrefação sem chocar e causar o mais terrível asco. O fim do dia se fez presente em sua totalidade. As trevas se aproximavam para engolir cada pedaço de chão, cada alma que arbitrariamente se instalou nesse fim-de-mundo... O horizonte ia se tornando impenetrável à limitada visão humana. Prossegui em passos firmes pelo velho caminho indicado. 

Todas as vezes, durante esta caminhada de data tão certa, ponho-me a observar as poucas moradias da região próxima ao cemitério, que estão presentes ao longo do caminho e se concentram em um pátio amplo, localizado pouco antes de onde estão as sepulturas. Desta vez, apesar de ser a primeira vez em que fiz este caminho em horário tão avançado, e enquanto a escuridão não se fazia total, não fugi ao hábito. . Como já vinha constatando, as condições se tornaram progressivamente mais precárias por aqui. As madeiras cada vez mais podres, repletas de fungos, plantas ressecando e morrendo num ritmo anormal e grotesco. Árvores sem folhas, outras com seus frutos à apodrecer repletos de vermes ao chão e uma nuvem de moscas a voar ruidosamente sobre sua copa. Animais magros e com comportamentos próximos à histeria; homens cada vez mais taciturnos... De mórbida aparência, estes moradores vão adquirindo contornos cadavéricos. Os ossos espetam a pele cinzenta. O fedor exalado de seus corpos vivos (não sei em que medida) é repugnante. Tentei encará-los nos olhos, mas a repulsa criada em minha mente tornou esta ação extremamente deletéria...

[...]

O PREÇO

"Ao longe sussurram os ventos gélidos provindos de zonas inomináveis.
Carregando consigo o cheiro dos cadáveres nus, putrefatos, oprimem os sentidos e o espírito...
Evocam memórias, insânias e símbolos impronunciáveis!" (Autor Desconhecido)


O antigo punhal, fruto de passagens testamentais de longa data, já está preparado para o momento derradeiro, no qual esta arma singela será utilizada sem hesitações ou qualquer outro pormenor. Em minhas ponderações pessoais posso imaginar os julgamentos aos quais serei submetido nos tempos que virão. Minhas forças serão postas sob dúvida; meu temperamento será considerado débil, subjugado. De qualquer maneira, afirmo com total convicção, o escárnio destes párias não me alcançará jamais. Um doudo proclamou acertadamente, certa vez, que estas escórias tornam-se cada vez mais insignificantes à medida que alcançamos ares mais elevados. Esta máxima carrego comigo neste momento. Os espíritos medíocres desta época, que se colocarão na posição de juízes, nunca entenderão as complexidades que estão ali entranhadas, debaixo dos seus olhos cegos pela ignorância e superstição mais tacanhas. Eu não terei minha memória diminuída pelas aberrações proclamadas nestes tempos obscuros que aguardam meu espírito!

Estremeço, mas não de medo. Trata-se, na verdade, de uma ansiedade que começa a me sufocar perversamente. Olho para o mundo que se encontra além da janela deste quarto, o ponto mais elevado da construção secular de minha nobre família e, para além do alcance de minhas vistas, apenas pressinto a vastidão insondável daquelas áreas encobertas por um denso miasma que paira taciturno, aguardando paciente os viajantes menos cautelosos que serão confundidos pelo aspecto uniforme da vegetação e ali encontrarão sua sepultura.

Posso sentir um frio cortante que envolve este quarto aos poucos. A partir daí, um estado de alerta toma conta de meu espírito, que se coloca cada vez mais inquieto. Talvez seja o preço que eu preciso pagar por ter ousado... Entretanto, eu não me arrependo do empreendimento realizado. O preço pela consumação de um desejo, através de qualquer meio – acentuando-se, penso, aqueles obtidos por meio de caminhos cujo caráter é mais obscuro e inacessível – sempre deve ser previsto logo nas épocas da gênese... O relógio preso à parede, acima do móvel antiquíssimo que guardará este relato à posteridade, com seu compasso uniforme, terrivelmente exato, me causa flagelos inauditos. Faz com que eu lembre a todo instante da miséria de minha condição atual, a qual será superada pelo que está por vir. Dissonâncias infernais ecoam pelas paredes, perturbam meus nervos numa seqüência maldita de notas! Desejo ser destruído neste momento de agonia. Devem ser estas dissonâncias oriundas de alguma fonte abissal a qual nem mesmo a mais breve menção deve ser feita... Entorpecido pelas excitações violentas que se processam, nada temo, não me acovardo em preces. Mais ao centro do quarto, posso perceber claramente uma névoa que parece materializar uma forma física desconhecida à percepção espacial vulgar. Um pesado miasma se faz presente, semelhante àquela emanação assassina que vi nas distantes zonas florestais, emanando um fedor repugnante. Minhas entranhas reagem a esta agressão, fico a ponto de vomitar, lacrimejo pela acidez do ambiente. Algo entre uma besta e um humano! Que imaginação doente poderia elaborar tão infame besta?! Com quais propósitos esta imagem surgiu, vinda de uma dimensão outra, neste mundo?! Qualquer outro espírito menos preparado teria entrado em algum estado vegetativo neste momento!

Ainda que fisicamente agredido e mentalmente esteja um pouco transtornado (atribuo isto a estes martírios terríveis que aniquilam meu organismo), posso perceber com uma lucidez anormal, os elementos animalescos unindo-se de forma grotesca a um corpo feminino mutilado, formando um amálgama hediondo. Tal visão estarrecedora, ainda que seu aspecto assombroso me desperte um asco indescritível, exerce alguma forma de domínio sobre mim. A fealdade demoníaca desta forma impossível de ser descrita com palavras, torna-se algo secundário diante da realização do desejo mais intenso que foi nutrido por mim. Tudo isto, por certo, configura um mistério sem resolução para os espíritos mais vulgares. Isto que estou presenciando agora, com certeza, é o começo de algo para além de qualquer compreensão...

ESPREITA

Tratava-se de um dos lugares mais miseráveis que pude observar durante minhas viagens como funcionário da Secretaria de Saúde Estadual. Entranhada num canto remoto, a pequena aldeia carrega um semblante de extrema desolação. Logo em sua entrada, um poço, que se mostrava muito antigo devido à aparência rústica do mecanismo pelo qual o balde vinha à superfície, além de uns tijolos faltosos na beira do poço e do estado putrefato da madeira que formava o tal mecanismo, denunciava tal caráter. Mais à frente, alguns instrumentos de roça quebrados e lançados aleatoriamente sobre o chão de terra batida. O sol desgraçadamente joga suas maldições sobre essa terra seca e inóspita. Uma lufada sopra a poeira densa... Olhei para o relógio já pensando em sair dali o mais rápido possível. Continuei a caminhar e observar a precariedade do lugar em questão. As casas são construções tradicionais feitas de pau-a-pique com telhados de palha seca. Possuem apenas uma porta e uma janela em sua frente. Não há subdivisões em seu interior. Isso é o que pude ver do lado de fora, já que algumas estavam com o interior acessíveis ao olhar. Não tive grande interesse em buscar adentrar uma destas casas, já que meu trabalho ali consistia apenas em falar com o responsável pelo local, devidamente cadastrado por outros agentes de saúde e lhe entregar um relatório feitos também por outrem.

Ninguém à vista. Pelo que havia constatado a pouco em meu relógio, àquela hora os poucos moradores do local deveriam estar na roça lutando contra os infortúnios desse lugar insalubre. Não havia mais nada a fazer a não ser esperar. Fui até o fim do vilarejo, onde havia uma sombra gerada por uma árvore nodosa e antiga. Ao longe, nada além de mais terra seca é o que eu podia alcançar com os olhos. Pontos cinzas denunciam a vegetação morta que se mantêm sobre o solo pobre... Não há perspectiva alguma ali, apenas um vazio parece engolir tudo vorazmente... O tempo passa e maltrata ainda mais os seres que moram, por mero acaso, neste vilarejo.

Agora, à menor lembrança do que acabei por ver naquele lugar, sinto um mal-estar inaudito. Apenas o esforço para trazer de volta aquela imagem torpe e relatar o fato ocorrido e por mim observado me causa o mais agudo e mortificante asco. Evitaria tal rememoração a todo custo se não fosse o meu encargo profissional coagindo-me a relatá-la. Que eu tivesse morrido ao ver tal miséria! Pois bem. Já sob a proteção parcial de uma sombra, após tentar, em vão, encontrar alguém que pudesse indicar o paradeiro da pessoa que me fez ir até ali, vi uma cena dantesca. Se algum deus existir, ele só pode ser um deus de Calamidade. Um deus que se coloca a observar suas crias infames a se contorcer em múltiplas Condenações, em severos Tormentos. Uma divindade que se alimenta de Decadência. Uma mentira que se fortalece a partir do Definhar... Após o estarrecimento inicial, fui cambaleante para mais perto daquilo que acabara de ver. Um fedor me invadiu as narinas naquele momento, de tal forma que não há com o que comparar aquele odor nauseabundo. A vertigem dali resultante foi severa. Vomitei sobre a terra seca que sugou rapidamente o que acabara de ser expulso de meu estômago. Com a manga da camisa que usava limpei minha barba e cheguei mais perto daquela infâmia. Tratava-se de um pequeno corpo, uma criança deitada na terra, sob o sol que lhe fritava a fronte macilenta. Naquele momento, após meus sentidos serem agredidos terrivelmente, uma atenção mórbida se desenvolveu. Estranhamente passei a tomar nota de todos os detalhes daquilo que se prostrava frente a mim. Minha repulsa, a partir dali, converteu-se numa curiosidade imperiosa. Qualquer humano em sã consciência evitaria dirigir novamente o olhar sobre tamanha abominação...

A criança, que aparentava não ter mais do que 5 anos de idade, estava com a barriga para cima, os braços e pernas bem abertos. Não havia movimento algum em seu corpo, a não ser pela fraca respiração que procurava dar continuidade àquela existência derrotada. Tão magra que os ossos pequenos e deformados pela má nutrição saltavam e se faziam perceptíveis sob a camada ressecada de pele. Bolhas de pus acumulavam-se e espocavam espontâneamente com o acumular de sânie. Possuía um crânio desproporcional à mediocridade do resto do corpo. Seus cabelos estavam imundos. Os lábios feridos liberavam algo repulsivo, que era ingerido talvez numa tentativa de saciar a sede... Não havia dentes. A língua estava inchada. Olhos bem abertos, rumo ao céu. Opacos e atentos.

Não sei por quanto tempo observei o estado deplorável do menino. Fui surpreendido com um movimento brusco e um balbuciar grotesco. Ruídos guturais, forçados, alimentados pelo que restava de força no corpo semi-morto. Mais uma vez um terror passa por minha espinha... O menino parece abandonar este mundo de miséria e se entregar aos vermes que lhe infestarão. Um rito de passagem hediondo se processava ali. Eu não deveria ter presenciado esta insanidade! Após o encerramento destas estranhas atividades, o corpo calou e permaneceu quieto, como antes. Olho ao redor do sepulcro indigno da criança. Ninguém se aproximava. Ninguém mais tomou conhecimento da morte desse menino. As casas permaneciam vazias, o sol continuava a malograr o vilarejo. Um suor gélido escorria de pela minha testa.

Já ao me preparar para ir embora, ouço um ruído, um grito maldito. No céu havia um par de urubus a voar em círculos. Afasto-me, lentamente devido ao meu estado mental, dali. Os carniceiros pousam triunfantes e chegam mais perto do cadáver. A primeira bicada traz consigo um dos olhos do defunto! A outra ave lhe perfura o ventre, que expulsa uma viscosidade morbígera. Os intestinos revelados saltam. Cães infames se aproximam. Todos magros e degenerados. Um deles morde com firmeza o pescoço do menino, que estala. Outro repuxa as vísceras para longe... Eu não poderia mais continuar ali. Fui para o carro, prestes a morrer. Deixo para trás o vilarejo, o que sobrou do menino, os urubus e os cachorros. O que após isso ocorreu não mais é necessário que seja pronunciado.

(...)

O corpo humano, tão glorificado como criação suprema de uma inteligência exterior se torna mero alimento para seres infames. A humanidade finda e a podridão se ergue, vencedora!

A ÚLTIMA INSPIRAÇÃO


Por muito tempo enveredei por estes caminhos tortuosos, sozinho. Algo de esquecido nos processos enclausurados pelo luto convencionado... Revirei a terra em busca daquilo que, sob sua frieza, simplesmente passava oculto. Exumei o que é mantido em segredo, expus as carnes podres sem pestanejar, os odores mefíticos trouxe à tona! Degenerações tanto físicas quanto mentais, tudo aquilo que é enclausurado, em sua crueza mais torpe.



Entre palavras enlameei as mãos, assim como as cobri com o sangue ora rubro, ora enegrecido fora da circulação. Pelas entranhas, o gosto pelo grotesco se misturou ao muco, às excretas tão animais, impregnando em minhas narinas o cheiro que exala o corpo inerte. Infantes em matadouros, vilipêndios de carcaças ora já em suas tumbas, ora apodrecendo sob a sombra d'uma árvore ou até "queimando" e sendo devoradas sob o sol escaldante. E todos apreciaram... Minha própria morte, experiências pós-mortais, cárceres privados, toda a sorte de relatos, de sangrias, de cânceres... À matéria, única coisa que importa, o seu fim. Não me arrependo de evocar em palavras a monstruosidade e a animalidade - quem sabe natureza, algo que duvido muito que exista, destes bichos feitos imagem e semelhança de alguma divindade que se auto-intitula: pai.



Caminhei a maior parte do tempo sem rimas, numa obscuridade, nunca as procurei e as que uma hora ou outra se mostraram ficaram a total encargo do acaso. Nunca considerei-me poeta, no máximo, por vezes, um doudo. Sem remorso algum, para o bem da verdade. Rimas não foram os alvos que tive em mente ao retirar de minhas próprias entranhas estas calamidades... Não me importo que outros as busquem, afinal. E para ti que até aqui caminha os olhos sobre estas linhas, minha última inspiração, em ambas as possibilidades, só me resta evocar as palavras d'um poeta: "Por ventura, meu Deus, estarei louco?!
Daqui por diante não farei mais versos."



Nem verso, nem prosa. Nada mais me interessa. Muito menos tuas palavras

UM PRETO (Flagelo e Espetáculo)

Eis que o animal se contorcia violentamente em dores e prantos. Ele parecia possesso. O suor lhe banhava a fronte escoriada, misturava-se ao sangue que escorria morno em pequenos fluxos ininterruptos. Grunhidos animalescos eram vomitados ali, ininteligíveis. Ainda carregava algo do seu idioma original, remanescência da terra de onde o bicho foi retirado. Perturbadora sonoridade. As carolas se aproximavam para assistir ao espetáculo. Cobriam as vistas com suas pequeninas mãos gordas na tentativa de dissimular o prazer frente ao sofrimento do corpo flagelado. Tentavam ignorar o animal, exposto vergonhosamente, vulnerável. Proferiam rezas e preces devidamente memorizadas, a purificação de suas almas perturbadas. Nada para o bicho!

Esta infame praça no centro da província, antigo cenário destinado a processos específicos de mortificação, recebia os curiosos já acostumados ao espetáculo de semelhante flagelo. Mero incentivo ao carrasco cínico com seu sorriso a estampar frente a agonia de um animal desgraçadamente submetido à autoridade.

O calor me irritava; o ar era muito desagradável. O mal-cheiro, que o corpo surrado exalava, era pungente. Excretas liberados involuntariamente escorriam por entre as pernas que tremiam e vacilavam. Espectadores atentos a cada expressão do bicho acorrentado à tora fincada verticalmente no chão sujo da praça. O olhar do carrasco frente ao animal. 

Um golpe: um grito.

Era um preto. Até que caiu morto.

ESCOPO



"Oh, noite
Em teus ventos gélidos
Percorrem velhos espíritos.
Em ti, Oh noite".




Por trás de velhas poesias,
Nada se esconde além do massacre.
Desmascaro a beleza dos versos
Cortando-os com a fria lâmina das necropsias.

Envolto num espectro nefasto,
Movimentos dirigidos contra o corpo.
Manipulação precisa de tais artefatos.


Dissecação: eis aqui o meu escopo.