domingo, abril 03, 2011

O PREÇO

"Ao longe sussurram os ventos gélidos provindos de zonas inomináveis.
Carregando consigo o cheiro dos cadáveres nus, putrefatos, oprimem os sentidos e o espírito...
Evocam memórias, insânias e símbolos impronunciáveis!" (Autor Desconhecido)


O antigo punhal, fruto de passagens testamentais de longa data, já está preparado para o momento derradeiro, no qual esta arma singela será utilizada sem hesitações ou qualquer outro pormenor. Em minhas ponderações pessoais posso imaginar os julgamentos aos quais serei submetido nos tempos que virão. Minhas forças serão postas sob dúvida; meu temperamento será considerado débil, subjugado. De qualquer maneira, afirmo com total convicção, o escárnio destes párias não me alcançará jamais. Um doudo proclamou acertadamente, certa vez, que estas escórias tornam-se cada vez mais insignificantes à medida que alcançamos ares mais elevados. Esta máxima carrego comigo neste momento. Os espíritos medíocres desta época, que se colocarão na posição de juízes, nunca entenderão as complexidades que estão ali entranhadas, debaixo dos seus olhos cegos pela ignorância e superstição mais tacanhas. Eu não terei minha memória diminuída pelas aberrações proclamadas nestes tempos obscuros que aguardam meu espírito!

Estremeço, mas não de medo. Trata-se, na verdade, de uma ansiedade que começa a me sufocar perversamente. Olho para o mundo que se encontra além da janela deste quarto, o ponto mais elevado da construção secular de minha nobre família e, para além do alcance de minhas vistas, apenas pressinto a vastidão insondável daquelas áreas encobertas por um denso miasma que paira taciturno, aguardando paciente os viajantes menos cautelosos que serão confundidos pelo aspecto uniforme da vegetação e ali encontrarão sua sepultura.

Posso sentir um frio cortante que envolve este quarto aos poucos. A partir daí, um estado de alerta toma conta de meu espírito, que se coloca cada vez mais inquieto. Talvez seja o preço que eu preciso pagar por ter ousado... Entretanto, eu não me arrependo do empreendimento realizado. O preço pela consumação de um desejo, através de qualquer meio – acentuando-se, penso, aqueles obtidos por meio de caminhos cujo caráter é mais obscuro e inacessível – sempre deve ser previsto logo nas épocas da gênese... O relógio preso à parede, acima do móvel antiquíssimo que guardará este relato à posteridade, com seu compasso uniforme, terrivelmente exato, me causa flagelos inauditos. Faz com que eu lembre a todo instante da miséria de minha condição atual, a qual será superada pelo que está por vir. Dissonâncias infernais ecoam pelas paredes, perturbam meus nervos numa seqüência maldita de notas! Desejo ser destruído neste momento de agonia. Devem ser estas dissonâncias oriundas de alguma fonte abissal a qual nem mesmo a mais breve menção deve ser feita... Entorpecido pelas excitações violentas que se processam, nada temo, não me acovardo em preces. Mais ao centro do quarto, posso perceber claramente uma névoa que parece materializar uma forma física desconhecida à percepção espacial vulgar. Um pesado miasma se faz presente, semelhante àquela emanação assassina que vi nas distantes zonas florestais, emanando um fedor repugnante. Minhas entranhas reagem a esta agressão, fico a ponto de vomitar, lacrimejo pela acidez do ambiente. Algo entre uma besta e um humano! Que imaginação doente poderia elaborar tão infame besta?! Com quais propósitos esta imagem surgiu, vinda de uma dimensão outra, neste mundo?! Qualquer outro espírito menos preparado teria entrado em algum estado vegetativo neste momento!

Ainda que fisicamente agredido e mentalmente esteja um pouco transtornado (atribuo isto a estes martírios terríveis que aniquilam meu organismo), posso perceber com uma lucidez anormal, os elementos animalescos unindo-se de forma grotesca a um corpo feminino mutilado, formando um amálgama hediondo. Tal visão estarrecedora, ainda que seu aspecto assombroso me desperte um asco indescritível, exerce alguma forma de domínio sobre mim. A fealdade demoníaca desta forma impossível de ser descrita com palavras, torna-se algo secundário diante da realização do desejo mais intenso que foi nutrido por mim. Tudo isto, por certo, configura um mistério sem resolução para os espíritos mais vulgares. Isto que estou presenciando agora, com certeza, é o começo de algo para além de qualquer compreensão...

Nenhum comentário:

Postar um comentário