domingo, abril 03, 2011

O ULTRA-ROMÂNTICO

E o rapaz contava, soluçando em prantos, todo o seu “amor”. Falava de todas as virgens anêmicas e suas pálidas frontes banhadas por um suor convulso em meio às noites de carícias infantis. E eu ria do pobre amante. Bebia meu vinho e ria de tamanha insolência. A taverna estava cheia. Vários bêbados circulavam,  ainda que trôpegos, pelo espaço. Poetas anônimos recitavam seus versos para as belas prostitutas da casa. Pego uma delas em meus braços. Ao jovem digo:

-Rapaz! Abandona aos vermes estes teus sonhos pueris! Que estes famintos devoradores consumam toda esta tua insânia! Relega à putrefação todas estas tuas ilusões ultra-românticas! Estas jovens pálidas que outrora lamentastes a perda jamais existiram, creio eu. Entrega-te à formosura das morenas que ali transpiram lascívia, verme. Aqueles volumosos seios são reais. O colo daquelas meretrizes estão longe da frieza destes cadáveres com os quais tu sonhas. Livra-te dos fedores daquelas carcaças inertes! Viva ao menos um dia fora desta tua ilusão literária!

Mas o diabo em minha frente não me dava ouvidos. Enterrava cada vez mais a face entre suas duas mãos e lamuriava...

-Diabo! Que morras sufocado neste pranto teu ilegítimo! Que os corvos carniceiros se saciem de tua carne podre, infeliz! Levem o cérebro onde fermentas loucuras e devaneios cegos!

Eis que ele ergue os olhos, vermelhos como brasa incandescente:

-Do que falas, incrédulo? Este teu materialismo não te permites entender minha situação. Não passas de um desesperado que busca o calor do colo prostituído. Os beijos que todos já provaram, o gozo que todos já gozaram. Tu és um cadáver que respira! De teu corpo emanas apenas este ateísmo mefítico!

-Diabo insolente! - brado - Alimentando tuas loucuras o que ganhas? A idolatria que tens para com os cadáveres anêmicos de tez amarelenta é repulsiva!

Por fim, o jovem levanta da mesa e sai da taverna. Deve ter ido ler mais algumas páginas dos romances ultra-românticos donde surgem os fantasmas que o atormentam... Volto à minha meretriz. Uma ode à secura do meu materialismo merece ser entoada!

O PASTOR

A menina se revira na cama velha onde estão ensopados, dum suor velho, os lençóis. O quarto mal iluminado encontra-se infestado por esta emanação infecta. A sua velha avó profere alguma prece que não compreendo. O dialeto é estranho a mim; já a mãe, mulher de meia-idade, está ajoelhada numa posição penitente. Outras mulheres em uníssono cantarolam uma música ancestral. E a menina... A menina se contorce com mais violência; abruptamente. 

É dramático ver os espasmos deste corpo macilento, sem roupas. Percebo um riso no canto daquela boca. Uma voz gutural... Ela rosna. Todos, atônitos, estão paralisados pelo temor. A voz é ameaçadora, ainda que eu não entenda o que acabou de ser dito. Prantos inauditos... O calor aumenta e o fedor se torna mais acre. No meu relógio já se marca o fim da tarde. O crepúsculo se revela lá fora; o quarto cada vez mais lúgubre e mórbido se torna. É insuportável, sufocante e mortífero continuar assistindo tão grotesca cena. À porta alguém bate apressadamente. Um anônimo corre para abri-la. Este volta correndo e gritando alto:

-É o pastor! É o pastor!

O recém chegado pastor adentra ao quarto nauseabundo e não se impressiona com a devassidão da posição da jovem. Não se incomoda com o fedor. Não me percebe ali. Ele parece já ter um vasto conhecimento acerca destas manifestações obscuras duma mente perturbada. Diz numa voz seca e ríspida:

-É um espírito malígno que se apossou desta criança.

Todos silenciam diante da sentença. O meu interesse começou a aumentar...

SOBRE O MÁRMORE

Repousas pacata sobre o mármore gélido,
Atestando a simplicidade de formas outrora vívidas.
Carregas consigo um semblante tão singular
Da vulgaridade imperceptível que jaz fria.

Ornamento simplório para a sepultura,
Lasciva meretriz acamada pela peste.
Definhando em seus suores mefíticos
Banhada, enrijece o corpo em cãibras.

Exumada... Sobre o mármore,
Intestinos para fora do corpo repulsivo.
Nuvem de moscas que paira sobre a fronte do infestado cadáver macilento...

INSALUBRIDADE

Sentia-me terrivelmente angustiado na clausura deste tormento. O ambiente, cáustico, destruía meus nervos através de constantes estímulos deletérios... Sons repetitivos miseravelmente se reproduziam em intervalos irregulares. Ruídos e mais ruídos! Um fedor nauseabundo,originado do mais repulsivo amálgama de detritos residuais, eu era obrigado a inalar. O ranger de mecanismos desconhecidos me dava a certeza de que havia sido condenado por algum crime hediondo, tamanho era meu sofrimento ali.

Vi outras pessoas; algumas sentadas, outras de pé segurando-se em vigas de aço. Pareciam sofrer a mesma desgraça que eu... Amontoavam-se. O ambiente metálico se assemelhava a uma enorme câmera de tortura. Vômitos exalavam seu odor característico. As paredes estavam cobertas por camadas incontáveis de dejetos. E a câmera de tormentos se movia! Desgraçado... não encontrei outra denominação a mim por experimentar tamanho processo malígno. Lamentei por horas... Ainda não podia descer do ônibus, afinal minha parada estava longe...

POETA EM PUTREFAÇÃO

"A poesia é decerto uma loucura:
Sêneca o disse, um homem de renome.
É um defeito no cérebro... Que doudos!
É um grande favor, é muita esmola
Dizer-lhes — bravo! à inspiração divina...
E, quando tremem de miséria e fome,
Dar-lhes um leito no hospital dos loucos...
Quando é gelada a fronte sonhadora
Por que há de o vivo, que despreza rimas,
Cansar os braços arrastando um morto,
Ou pagar os salários do coveiro?"
(Álvares de Azevedo 1831-1852)

E jazia o corpo inerte, encostado sob a sombra de uma árvore antiga. Ao lado, uma garrafa esvaziada de cachaça. Apesar de desfigurado pela decomposição que se manifestava em seu curso naturalmente estabelecido, pude reconhecer o cadáver como sendo de um poeta muito conhecido, que perambulava pelas ruas da cidade. Os trapos vomitados que vestia costumeiramente, a barba desgraçada e pestilenta. Da boca desdentada, versos saíram em fluxos intermináveis... Poesia aos ouvidos entorpecidos pelas imagens mais estúpidas que eram criadas através das rimas e do ritmo da fala do poeta louco. Flores, sol, amores perdidos, toda sorte de inutilidades. Palmas ao poeta!

Agora veja o que resta. O cadáver sendo consumido pelos vermes que numa onda violenta se manifestam em seu ventre inchado. A coloração da tez, o livor das extremidades, os humores mefíticos expelidos. Sânie que escorre das chagas abertas. Os insetos devoradores, a nuvem de moscas, o miasma pestilento que emana o pedaço de carniça que outrora se preocupava com rimas, beleza, poesia e insânias... Foi um estúpido apreciado por uma legião de "sensíveis". A única poesia que vejo é o corpo morto misturando-se à poeira. 

Eu, que desprezo as rimas, vou embora enquanto o poeta, com as secreções morbígenas que secreta, escreve sua última poesia no mato que o cercou em seu leito de morte...

BRUMAS


Em incertezas abatemos quimeras relutantes,
Vaga o som da escuridão, em ondas imperceptíveis
Escumas recobrem aquilo que era tão certo e próximo...

Cancros entranhados lembram-nos a todo momento
Do Fim material sem propósito, amargamente concebido,
Inerências assombrosas...

SERES INFAMES

“Seres infames, profanas criações dos ventos pestilentos que sopram e mutilam. Criaturas bestializadas e horrendas. Cães vindos do inferno, das profundezas abissais surgem a vomitar blasfêmias. Deicidas... seres aniquiladores dos vivos, devoradores dos podres cadáveres. Habitantes daqueles ambientes desolados e mortíferos os quais a vida exige que sejam evitados para sua própria manutenção... Ghouls!"(Escrito Anônimo).

I - A quem interessar possa

A noite, associada aos seus mistérios ancestrais, revela-se sempre uma aterradora inimiga. Mesmo aqueles homens que foram dotados de uma imaginação pouco impressionável frente à cadeia de manifestações inexplicáveis que envolvem a existência humana estão sujeitos a experimentar momentos do mais profundo pavor e angústia, proporcionados pela negrura infindável que a tudo envolve num manto mórbido e doentio.

Talvez estas histórias extraordinárias, sempre relatadas no curso da cultura humana, soem fantasiosas e absurdas para as céticas inteligências... Mas quanto a isso eu nada posso fazer. Não procuro convencer a quem quer que seja acerca da veracidade destes fatos tão excepcionais. Apenas sigo uma ordem imperiosa e de caráter muito particular. Eu mesmo acho que tal infâmia deveria ser mantida em segredo e oculta nas profundezas insondáveis do esquecimento. Guardar tais lembranças e torná-las inacessíveis a mim mesmo é um desejo que nutro com todas as minhas forças desde aquele fatídico dia... Entretanto, para minha desgraça e total ruína, não tenho nenhum poder, nenhum arbítrio sobre os conteúdos que em vultos bruxuleantes se manifestam em meus sonhos e nas imagens diabólicas e desconexas que me atormentam sadicamente todos os dias. Nestes momentos que beiram o meu desgraçado fim, apesar de toda a resistência que em vão tento esboçar, meu corpo é direcionado à escrita desde depoimento amaldiçoado.

O suor frio, o coração que funciona num ritmo doente, minha respiração fraca e as mãos trêmulas refletem a ação destes pensamentos sobre meu organismo. De tal medida, já peço desculpas antecipadas pela insolente caligrafia deste manuscrito hediondo. A urgência de minha morte fez com que tu sejas o primeiro a saber de tais fatos, ocorridos em uma data que eu não irei precisar com exatidão. Que a má-sorte daqui por diante exposta jamais se coloque a ti...

II - Um dia qualquer: localidades

A caminhada até o túmulo de minha mãe, que realizo todos os anos, em sua memória, mais uma vez havia esgotado todas as minhas forças. Com um terreno por demais acidentado, estas precárias condições impedem que eu possa seguir a viagem de carro. Deixo-o, todas as vezes, em frente à casa de um velho conhecido de meus pais e muito querido por minha mãe. Um senhor de idade já avançada cujos movimentos são bastante degenerados devido à sua senilidade. Adiante, poucos metros à frente, há uma entrada, com uma placa velha e já apodrecida fincada ao chão na qual está escrita, com uma péssima caligrafia e em letras vermelhas – a este ponto, já desbotadas –, a indicação do caminho para um cemitério. Até hoje procuro por qual razão segui o pedido de minha velha mãe de ser enterrada neste cemitério tão distante de nossa casa. O único elo entre este local e minha mãe é justamente o seu velho amigo, tão debilitado homem. “Nenhuma maldição haverá de se abater sobre mim caso eu contrarie este último capricho de minha mãe”, pensava eu à época. Mas não a contrariei... Talvez algum fluxo oculto, alguma inteligência que antecede os primeiros passos humanos neste planeta, possa guiar as decisões feitas em nossa vida, das mais triviais até às mais carregadas de subjetivismo e significado, como o cemitério no qual o corpo morto de alguém próximo e querido irá se tornar recluso para que possa seguir o curso natural de sua putrefação sem chocar e causar o mais terrível asco. O fim do dia se fez presente em sua totalidade. As trevas se aproximavam para engolir cada pedaço de chão, cada alma que arbitrariamente se instalou nesse fim-de-mundo... O horizonte ia se tornando impenetrável à limitada visão humana. Prossegui em passos firmes pelo velho caminho indicado. 

Todas as vezes, durante esta caminhada de data tão certa, ponho-me a observar as poucas moradias da região próxima ao cemitério, que estão presentes ao longo do caminho e se concentram em um pátio amplo, localizado pouco antes de onde estão as sepulturas. Desta vez, apesar de ser a primeira vez em que fiz este caminho em horário tão avançado, e enquanto a escuridão não se fazia total, não fugi ao hábito. . Como já vinha constatando, as condições se tornaram progressivamente mais precárias por aqui. As madeiras cada vez mais podres, repletas de fungos, plantas ressecando e morrendo num ritmo anormal e grotesco. Árvores sem folhas, outras com seus frutos à apodrecer repletos de vermes ao chão e uma nuvem de moscas a voar ruidosamente sobre sua copa. Animais magros e com comportamentos próximos à histeria; homens cada vez mais taciturnos... De mórbida aparência, estes moradores vão adquirindo contornos cadavéricos. Os ossos espetam a pele cinzenta. O fedor exalado de seus corpos vivos (não sei em que medida) é repugnante. Tentei encará-los nos olhos, mas a repulsa criada em minha mente tornou esta ação extremamente deletéria...

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