domingo, abril 03, 2011

ESPREITA

Tratava-se de um dos lugares mais miseráveis que pude observar durante minhas viagens como funcionário da Secretaria de Saúde Estadual. Entranhada num canto remoto, a pequena aldeia carrega um semblante de extrema desolação. Logo em sua entrada, um poço, que se mostrava muito antigo devido à aparência rústica do mecanismo pelo qual o balde vinha à superfície, além de uns tijolos faltosos na beira do poço e do estado putrefato da madeira que formava o tal mecanismo, denunciava tal caráter. Mais à frente, alguns instrumentos de roça quebrados e lançados aleatoriamente sobre o chão de terra batida. O sol desgraçadamente joga suas maldições sobre essa terra seca e inóspita. Uma lufada sopra a poeira densa... Olhei para o relógio já pensando em sair dali o mais rápido possível. Continuei a caminhar e observar a precariedade do lugar em questão. As casas são construções tradicionais feitas de pau-a-pique com telhados de palha seca. Possuem apenas uma porta e uma janela em sua frente. Não há subdivisões em seu interior. Isso é o que pude ver do lado de fora, já que algumas estavam com o interior acessíveis ao olhar. Não tive grande interesse em buscar adentrar uma destas casas, já que meu trabalho ali consistia apenas em falar com o responsável pelo local, devidamente cadastrado por outros agentes de saúde e lhe entregar um relatório feitos também por outrem.

Ninguém à vista. Pelo que havia constatado a pouco em meu relógio, àquela hora os poucos moradores do local deveriam estar na roça lutando contra os infortúnios desse lugar insalubre. Não havia mais nada a fazer a não ser esperar. Fui até o fim do vilarejo, onde havia uma sombra gerada por uma árvore nodosa e antiga. Ao longe, nada além de mais terra seca é o que eu podia alcançar com os olhos. Pontos cinzas denunciam a vegetação morta que se mantêm sobre o solo pobre... Não há perspectiva alguma ali, apenas um vazio parece engolir tudo vorazmente... O tempo passa e maltrata ainda mais os seres que moram, por mero acaso, neste vilarejo.

Agora, à menor lembrança do que acabei por ver naquele lugar, sinto um mal-estar inaudito. Apenas o esforço para trazer de volta aquela imagem torpe e relatar o fato ocorrido e por mim observado me causa o mais agudo e mortificante asco. Evitaria tal rememoração a todo custo se não fosse o meu encargo profissional coagindo-me a relatá-la. Que eu tivesse morrido ao ver tal miséria! Pois bem. Já sob a proteção parcial de uma sombra, após tentar, em vão, encontrar alguém que pudesse indicar o paradeiro da pessoa que me fez ir até ali, vi uma cena dantesca. Se algum deus existir, ele só pode ser um deus de Calamidade. Um deus que se coloca a observar suas crias infames a se contorcer em múltiplas Condenações, em severos Tormentos. Uma divindade que se alimenta de Decadência. Uma mentira que se fortalece a partir do Definhar... Após o estarrecimento inicial, fui cambaleante para mais perto daquilo que acabara de ver. Um fedor me invadiu as narinas naquele momento, de tal forma que não há com o que comparar aquele odor nauseabundo. A vertigem dali resultante foi severa. Vomitei sobre a terra seca que sugou rapidamente o que acabara de ser expulso de meu estômago. Com a manga da camisa que usava limpei minha barba e cheguei mais perto daquela infâmia. Tratava-se de um pequeno corpo, uma criança deitada na terra, sob o sol que lhe fritava a fronte macilenta. Naquele momento, após meus sentidos serem agredidos terrivelmente, uma atenção mórbida se desenvolveu. Estranhamente passei a tomar nota de todos os detalhes daquilo que se prostrava frente a mim. Minha repulsa, a partir dali, converteu-se numa curiosidade imperiosa. Qualquer humano em sã consciência evitaria dirigir novamente o olhar sobre tamanha abominação...

A criança, que aparentava não ter mais do que 5 anos de idade, estava com a barriga para cima, os braços e pernas bem abertos. Não havia movimento algum em seu corpo, a não ser pela fraca respiração que procurava dar continuidade àquela existência derrotada. Tão magra que os ossos pequenos e deformados pela má nutrição saltavam e se faziam perceptíveis sob a camada ressecada de pele. Bolhas de pus acumulavam-se e espocavam espontâneamente com o acumular de sânie. Possuía um crânio desproporcional à mediocridade do resto do corpo. Seus cabelos estavam imundos. Os lábios feridos liberavam algo repulsivo, que era ingerido talvez numa tentativa de saciar a sede... Não havia dentes. A língua estava inchada. Olhos bem abertos, rumo ao céu. Opacos e atentos.

Não sei por quanto tempo observei o estado deplorável do menino. Fui surpreendido com um movimento brusco e um balbuciar grotesco. Ruídos guturais, forçados, alimentados pelo que restava de força no corpo semi-morto. Mais uma vez um terror passa por minha espinha... O menino parece abandonar este mundo de miséria e se entregar aos vermes que lhe infestarão. Um rito de passagem hediondo se processava ali. Eu não deveria ter presenciado esta insanidade! Após o encerramento destas estranhas atividades, o corpo calou e permaneceu quieto, como antes. Olho ao redor do sepulcro indigno da criança. Ninguém se aproximava. Ninguém mais tomou conhecimento da morte desse menino. As casas permaneciam vazias, o sol continuava a malograr o vilarejo. Um suor gélido escorria de pela minha testa.

Já ao me preparar para ir embora, ouço um ruído, um grito maldito. No céu havia um par de urubus a voar em círculos. Afasto-me, lentamente devido ao meu estado mental, dali. Os carniceiros pousam triunfantes e chegam mais perto do cadáver. A primeira bicada traz consigo um dos olhos do defunto! A outra ave lhe perfura o ventre, que expulsa uma viscosidade morbígera. Os intestinos revelados saltam. Cães infames se aproximam. Todos magros e degenerados. Um deles morde com firmeza o pescoço do menino, que estala. Outro repuxa as vísceras para longe... Eu não poderia mais continuar ali. Fui para o carro, prestes a morrer. Deixo para trás o vilarejo, o que sobrou do menino, os urubus e os cachorros. O que após isso ocorreu não mais é necessário que seja pronunciado.

(...)

O corpo humano, tão glorificado como criação suprema de uma inteligência exterior se torna mero alimento para seres infames. A humanidade finda e a podridão se ergue, vencedora!

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